Quando minha mãe carnal estava grávida de mim, houve uma gira na cachoeira.
Recém-iniciada para Yèmónja, ela foi se banhar nas águas de Osún, afinal, carregava um ventre.
E foi ali, nas águas doces, que ela incorporou Yèmónja quase pela última vez antes do meu nascimento.
Yèmónja lavou sua barriga dentro da cachoeira.
Minha mãe de santo, silenciosa, apenas observava enquanto eu era banhada ainda no ventre.
Quando nasci, vim antes do tempo.
No horário de Yèmónja, mas no dia da semana de Oyá.
Ali se cravou a disputa de duas Iyá’s por um ori.
Até os meus oito anos, o número de Yèmónja, tudo foi dela:
os guias, os banhos, os axés.
Era ela quem me preparava.
Dos oito aos dezesseis, tudo passou a ser de Oyá.
Meu batismo, minha força, meu jeito.
O vento, a intensidade, a fúria doce.
Ninguém compreendia tamanha mudança.
Ninguém, exceto minha mãe de santo, que se calava.
Eu cresci dentro da religião.
E a guerra das duas Iyá’s se tornou visível no terreiro.
Até que um dia, se confirmou meu ori.
Uma havia vencido.
Uma tomou minha cabeça.
Naquela quartinha guardada no alto do roncó, ventre do terreiro,
se revelou o mistério da minha essência.
Ouvi minha Iyalorisá gritar:
“Odociaba! Odoyá! Iyá Ori, Bruna! Iyá Ori! Iyá Ogunté!”
Eu estava paralisada.
Com a quartinha nas mãos que deveria ser de Oxalá e que agora tomava todos os aspectos de Yèmónja.
Oyá entregou minha cabeça para Ogunté, diante de todos.
E ali, naquele instante, tudo fez sentido:
Minha mãe carnal é de Yèmónja Ogunté. Ela é minha primeira navalha.
Minha mãe de santo também é de Yèmónja Ogunté. Ela será minha segunda navalha.
E eu sou de Ogunté em todas as linhas.
Três navalhas forjadas em ferro e sal.
Três espelhos do mesmo orí.
Eu não entendia.
Chorei até secar. Não havia mais água no meu corpo.
Por três dias, senti rejeição.
Como se meu ori não fosse capaz de sustentar uma Iyá.
Por uma semana, fiquei anestesiada.
Até que entendi quem é minha mãe.
Iyá Yèmónja Ogunté.
Numa noite, tudo parou.
O mundo parou em um silêncio profundo.
Eu me vi no mar.
Cercada de água, indo cada vez mais fundo,
seguindo a luz da lua.
E um grito agudo, profundo, ecoava do fundo do oceano:
“OGUN ALABEDÉ!”
O criador do ferro.
Senhor dos dois facões.
Filho de Ogunté.
A água se tornava turva, turbulenta.
Me engolia como se eu fosse Alabedé.
À direita, um tsunami.
À esquerda, um redemoinho.
E no centro de tudo: Iyá Ogunté.
Ogunté é isso.
É a senhora das águas profundas,
onde o pé não alcança o chão
e a cabeça não alcança a superfície.
É onde se formam os redemoinhos, os tsunamis, os segredos.
É o grito agudo de uma mãe chamando por seus filhos.
Toda a humanidade conhece Ogunté.
A guerreira do castelo de Olocum.
A feiticeira do mar.
A Yèmónja que aceita dendê, mel, azeite doce.
A mais temida do Orun.
A única que parou Ogunjá quando ele dizimava o mundo.
Ela carrega a sensualidade de uma mulher, a vaidade, o perfume, a doçura, mas também a força, a coragem, a ferocidade de Ogun.
Guerreira sanguinária, imparável,
que vestiu-se de sangue e venceu exércitos.
A senhora dos mistérios dos mares e rios.
Iyá temida, respeitada, reverenciada.
Não se engane com o nome Yèmónja:
ela também é do clã de Odé.
Ela também é Ogun.
Essa é minha mãe.
Eu sou filha de Yèmónja Ogunté.
Bruna Souza, futura yawo d'Ogunté.